segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

VOLTAR DESCALÇO



(Sérgio Lisboa)
Teve um Grenal na década de setenta em que o Grêmio venceu com um gol do ponteiro esquerdo Éder. O Éder para quem não lembra ou não conheceu era o cara mais irreverente, malandro, mulherengo e para piorar ainda mais seu currículo, era um dos mais técnicos atacantes que este país já viu jogar.
Neste dia, num domingo de muito sol, no estádio do Inter, o Beira-Rio, Éder fez um golaço no segundo tempo e saiu para comemorar em direção às sociais do Internacional com a mão segurando o seu membro sob os calções e sacudindo freneticamente como a oferecê-lo para a torcida adversária. Aquele momento ficou marcado para sempre na minha memória, não o membro do Éder (qualé?!) mas aquela atitude dele de deboche em último grau sem nem sequer tomar um cartão amarelo pelos gestos obscenos que ele fez, muito diferente de como é hoje. Hoje se um jogador de futebol comemorar com um sorriso um gol marcado acaba expulso do jogo. Não é muito difícil de entender, uma vez que com jogos de resultados marcados é uma estupidez comemorar alguma coisa.

Vivíamos a ditadura e os militares que tanto nos amordaçaram sabiam que o estádio de futebol, tal qual o Coliseu da Roma antiga, era o lugar para o povo se esbaldar e os gladiadores ali dentro por pequenos instantes eram livres e não tinham essas regras bestas de não poderem sequer comemorar um gol ou uma mutilação sangrenta do adversário.

Voltando a comemoração do Éder, o que mais me chamou a atenção depois daquela comemoração foi a verdadeira chuva de objetos jogados sobre ele desde radinhos de pilhas, almofadas, bandeiras, pedras, guarda-chuvas (apesar do sol) e sapatos. Isso mesmo sapatos.
Eu sempre pensei, desde aquele dia, qual o grau de irritação de uma pessoa, não para ter coragem de jogar algo em alguém, mas em optar a voltar completamente descalço para casa em nome de uma desforra de tentar atingir alguém que lhe causou indignação ou lhe trouxe sofrimento.

Talvez o Presidente Bush naquele momento estivesse comemorando de uma forma tão obscena e tão debochada, como o Éder há trinta anos que mereceu, assim, levar umas sapatadas pela cara.
Antigamente se podia tanto ser debochado e obsceno quanto ser impulsivo e jogar os sapatos nos crápulas. Hoje só aos crápulas é permitido o deboche e a obscenidade.

O BOLO DA VERDADE ABATUMOU



(Sérgio Lisboa)
Sempre que alguém emite uma opinião, com raríssimas exceções, esta pessoa se manifesta em função do universo em que vive. Seus juízos passam pelas experiências que teve e principalmente por aquilo que ela representa. Escondidas sobre o manto da ética, as pessoas na realidade defendem um corporativismo muito forte.
Advogados lutam como leões para preservarem seu status bem como suas posições, assim como os médicos, policiais, professores, políticos, ladrões (já não tinha citado estes?) desempregados, sem-terras, religiosos, militantes políticos e até flanelinhas.
O suicida, que muitos pensavam que era um sujeito que não tinha amor pela própria vida, na realidade é o mais forte representante do corporativismo, levando consigo o seu corpo quando não vê mais saída na defesa dos seus interesses.

O mundo seria menos confuso se todos os especialistas, professores ou intelectuais informassem em que partido militam ou qual o seu trauma de infância em que assimilaram algum preconceito ou idéia fixa que teimam em não desgrudar de suas entranhas e sempre se manifestam ao primeiro sinal de adrenalina lançada na região sangüínea nos momentos acalorados de discussões ideológicas que tomam o seu corpo para emitir uma opinião ou uma verdade absoluta.

Quando as teorias tão arrogantemente defendidas caem e surgem as crises, especialmente as econômicas, a culpa é sempre de algo que não foi considerado, um detalhe esquecido, do Sobrenatural de Almeida ou do autor da teoria que agora, com a casa caída, todo mundo sempre soube que não daria certo. Ninguém questiona que talvez não exista uma receita de bolo para o que é certo.Talvez até exista uma receita de bolo para a verdade, mas assim mesmo será preciso muito cuidado com a procedência e o prazo de validade dos ingredientes, senão o bolo se torna abatumado, isto é, duro e pesado por pouca fermentação da massa (Viu? Sempre é necessário um crescimento da massa).

Muito se repete por aí que a verdade quase sempre é dura e pesada, mas nem por isso precisa ser abatumada.Aliás, o bolo da verdade abatumado é mais difícil de engolir do que o pãozinho quente da mentira.